sábado, 8 de janeiro de 2011

Memória de um Povo

«A relação do camponês com a Terra e com a Vida é quase sacral. Ninguém é tão sensível à Alma Comum que anima e faz respirar todos os seres, esse panteísmo cósmico que vê Deus em tudo e tudo em Deus. Ninguém tem uma alma tão predisposta, tão aberta à beleza, à gravidade, à majestade da Natureza. O tempo para ele não é o tempo abstracto, mecânico dos relógios; mas o tempo concreto e criador do mundo da vida. Sabe e sente que há um abismo intransponível entre o mundo mecanizado da indústria, que cria milhares de artefactos por dia, por hora; e o mundo lento e incansável e laborioso da Vida, que, sem pressa e sem descanso, como fazem as estrelas, leva duzentos anos a criar um castanheiro ou um frondoso carvalho.»
Isabel Silvestre em Memória de um Povo.

Isabel Silvestre na capa do seu livro, intitulado
Memória de um Povo.

A não referência neste espaço ao recém editado livro de Isabel Silvestre, constituiria um autêntico crime de lesa-pátria. Como se já não tivesse contribuído o suficiente para manter forte o fogo interior da Alma Portuguesa, aconchegando, encantando e comovendo com a quase divina doçura da sua voz, a ex-professora primária, natural da aldeia de Manhouce, situada nas imediações de S. Pedro do Sul, lançou durante o passado mês de Dezembro um livro intitulado Memória de um Povo, editado pela Temas e Debates / Círculo de Leitores. Nele podemos encontrar uma recolha de lengalengas, histórias, orações, modos de falar, expressões, pregões, provérbios, adivinhas, quadras, romances, cantares ao desafio, recordações, pautas musicais, entre outros tesouros constituintes da memória colectiva daquela localidade e região. Um livro obrigatório, à semelhança de toda a sua discografia.


Aí senhor das furnas
Que escuro vai dentro de nós
Rezar o terço ao fim da tarde
Só para espantar a solidão
Rogar a Deus que nos guarde
Confiar-lhe o destino na mão

Que adianta saber as marés
Os frutos e as sementeiras
Tratar por tu os ofícios
Entender o suão e os animais
Falar o dialecto da terra
Conhecer-lhe o corpo pelos sinais

E do resto entender mal
Soletrar assinar em cruz
Não ver os vultos furtivos
Que nos tramam por trás da luz

Aí senhor das furnas
Que escuro vai dentro de nós
A gente morre logo ao nascer
Com olhos rasos de lezíria
De boca em boca passar o saber
Com os provérbios que ficam na gíria

De que nos vale esta pureza
Sem ler fica-se pederneira
Agita-se a solidão cá no fundo
Fica-se sentado à soleira
A ouvir os ruídos do mundo
E a entendê-los à nossa maneira

Carregar a superstição
De ser pequeno ser ninguém
Mas não quebrar a tradição
Que dos nossos avós já vem

Sem comentários:

Enviar um comentário