terça-feira, 26 de agosto de 2014

Auto da Primavera: Uma peça esquecida de Luiz de Freitas Branco!

«Ao terminar a leitura do conto O Inverno durava há muito, coincidindo com a conversa havida com António Sardinha e João Cabral do Nascimento, veio-me a inspiração de um trabalho repassado de misticismo e de um fôlego, numa noite, escrevi o Auto da Primavera, que foi publicado em 1919, com música e meu primo o Professor Luiz de Freitas Branco.»
Visconde do Porto da Cruz na introdução do Auto da Primavera.

Capa da segunda edição do Auto da Primavera (1950).

Há alguns anos atrás, de visita à Escola Superior de Dança, escutamos estupefactos um professor de música afirmar, com bastante arrogância e presunção, que não tratava os compositores portugueses nas suas aulas por estes serem menores e não apresentarem obras musicalmente relevantes. Numa atitude que é transversal a praticamente todos os domínios da arte em Portugal, este professor deixou bem patente a ignorância e ignomínia com que a cultura nacional é hoje tratada em grande parte das nossas instituições.
A música erudita em Portugal não só existe, como constitui uma parte significativa do nosso património cultural. Não foi apenas com a idade de ouro da polifonia portuguesa que a cultura lusíada manifestou musicalmente o seu génio e esplendor. Tanto em períodos anteriores, como posteriores, chegando até ao nossos dias, a música portuguesa acompanhou ao longo dos séculos as várias tendências e revoluções, contribuindo em muitos casos para o desenvolvimento dos sucessivos movimentos de ruptura e vanguarda. Isto sem nunca perder a sua identidade e respectivas especificidades.
Infelizmente, nos últimos quarenta anos, à imagem de outras dimensões da cultura nacional, contrariando o nome de um interessante projecto de recuperação do nosso património musical, somos obrigados a afirmar que a música portuguesa não tem gostado de si própria. Nas primeiras páginas da obra seminal Música Minimal Repetitiva, o saudoso musicólogo Jorge Lima Barreto apontou o dedo a três factores que estariam na base desta triste realidade. A inépcia dos contratos culturais dos sucessivos governos; a influência dos mass media, controlados por uma “musoburocracia” que, de um modo inclemente, serve os empresários discográficos dependentes dos interesses estrangeiros; e por fim o próprio público, levado a desconfiar e repudiar tudo o que é português. Conforme podemos testemunhar quotidianamente, a análise destes três pontos é essencial para percebermos o esquecimento ao qual está votado o nosso património musical.
Luiz de Freitas Branco, renomada personalidade do panorama cultural português do século XX, constitui um dos muitos incontornáveis exemplos que nos permitem e obrigam a contrariar comentários infelizes como os daquele pobre professor, repetidor das directrizes antipatriotas do sistema. Compositor, músico e professor, Luiz de Freitas Branco fez parte dos seus estudos na Alemanha. Em Portugal manteve-se sempre próximo do Integralismo Lusitano, convivendo com Alberto Monsaraz, António Sardinha e Hipólito Raposo. Entre os seus alunos no Conservatório de Lisboa, do qual chegou a ser subdirector, constam nomes como Joly Braga Santos ou Maria Campina. Contudo, foi na área da composição musical que deixou a sua marca, através de uma extensíssima obra cujo inquestionável valor o imortalizou na História da Música.
No entanto, também os nossos compositores mais célebres possuem trabalhos menos conhecidos que aguardam o momento de serem redescobertos. É o caso do Auto da Primavera, obra «repassada de espiritualidade», acompanhada pela música de Luiz de Freitas Branco, escrita em meados de 1919 pelo seu excêntrico primo, o Visconde do Porto da Cruz. Nascida de um repto lançado por António Sardinha e João Cabral do Nascimento, esta obra pitoresca de inspiração místico-religiosa suscita a curiosidade de todos quanto se deleitam ao mergulhar num típico quadro romântico de inícios do século XX. Resta-nos hoje a virtude de aguardar pela possibilidade de voltarmos a poder ouvir esta peça, há décadas esquecida.

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